O "Mar" da História Trágico-Marítima de Portugal por José Saramago



Estou de férias na Galiza e no País Basco, junto ao mar e nele, e desta vez trouxe "A História Trágico-Marítima" de  Gomes de Brito como leitura. É uma excelente edição da saudosa editora portuguesa "Afrodite" de Fernando Ribeiro de Mello, anterior à Revolução dos Cravos de 1974.

Deixo-vos com uma apreciação de José Saramago, prémio nobel da literatura que nos deixou à pouco, sobre uma obra com o mesmo contexto e editada pela mesma editora, a "História Trágico -Marítima" de Gomes de Brito. Trancrevemos, com a devida vénia, um post do blogue Afrodite, Página sobre as Edições Afrodite/ Fernando Ribeiro de Mello.

José Saramago nas Edições Afrodite 

 



Recuperamos um post aqui publicado em Outubro de 2008, onde apresentámos alguns excertos do comentário de José Saramago para a edição da História Trágico-Marítima, intitulado A Morte Familiar:

... que representa hoje para nós este longo rosário de morte e sofrimento, despido de todos os prestígios do heroísmo vivo ou da sua exploração literária?
Por quanto entendo, a História de Gomes de Brito é um livro menosprezado que sofre também daquela espécie de maldição mansa que desceu sobre as Crónicas de Fernão Lopes, sobre a Peregrinação, sobre tantas outras obras que vamos encontrar nas esquinas da cultura com todos os rótulos adequados: «clássico», «importante», «fundamental», e que, após a leitura forçada pela obrigação escolar ou estimulada por um interesse acidental, são postas de lado, até nunca mais. Delas é preciso falar para que fique claro que não se é alheio à literatura herdada dos séculos, mas fala-se com aquele ar de pouco caso que é também receio de que a ocasião exija maior aprofundamento: aí não chegaram os benefícios de qualquer folhear apressado.
A de História Trágico-Marítima é pois um livro desconhecido. Condensa-a uma ficha «cultural» definitivamente catalogada, alinhada de lugares-comuns para uso rápido e descomprometido. Nesse estado de documento a duas dimensões, é muito mais infalível do que seria a leitura verdadeira, com certeza inquieta, talvez demolidora de convicções habituais e de ideias feitas.
Dizer dela que representa a face oxidada do doirado medalhão da descoberta e da conquista, poderia ser, para além da metáfora, um ponto de partida polémico e estimulante. Mas acontece neste caso o que também em muitos outros de igual alternância se verifica: o princípio estabelecido pelos hábitos culturais cobre em excesso a realidade – e oculta-a. E isto é precisamente o que a vida quotidiana luta para fazer à morte: escondê-la, ocultá-la, esquecê-la, se possível. Para a questão em causa (quem foram de facto, que fizeram verdadeiramente por esses mares os portugueses do séc xvi) dispomos até da ocultação por excelência: o triunfalismo de Os Lusíadas.

(...)

São milhares os portugueses, desde o grumete da alfama ao fidalgo de avós godos, que morrem aos gritos nestas páginas; são milhares os escravos que igualmente morrem, mas em silêncio, porque deles não ficou nem o nome nem a voz.

(...)

A expressão do sofrimento é contínua na História Trágico-Marítima. São brevíssimas as pausas neste lamento que se desenrola como uma melopeia infinita, sem esperanças de que a escutem, e que se contenta com ouvir-se a si mesma.

(...)

E é neste ponto que chego a um dos aspectos que mais fundamente me tocam na História Trágico-Marítima: precisamente, a familiaridade da morte. Nos Lusíadas, epopeia oficializada de uma nação largada na aventura do mar desconhecido, a morte é cenográfica, adorna-se de um fundo de deuses complacentes e risonhos, violentos só por necessidade de clímax. Tudo se passa como se já a pátria ali estivesse presente, abençoando os heróis e os mártires, desenhando-lhes estátuas para a reverência da posteridade.
posted by ricardo jorge at 2:15 PM

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O "Mar" da Bounty: as miniaturas de Alain Trégou

o "Mar" da "Rasca da Ericeira"

Le Barche in Bottiglia di Carlo

Os sonhos em garrafas de Henri Rannou / Rêves en bouteilles de Henri Rannou / Dreams in bottles by Henri Rannou / Sueños en botellas de Henri Rannou / Sogni in bottiglia di Henri Rannou / Träume in Flaschen von Henri Rannou

A Rasca da Ericeira, feita por mim há 36 anos / Ericeira's Rasca, made by me 36 years ago / El Rasca de Ericeira, hecho por mí hace 36 años / Rasca d'Ericeira, faite par moi il y a 36 ans / Ericeiras Rasca, hergestellt von mir vor 36 Jahren / Rasca di Ericeira, realizzato da me 36 anni fa

As garrafas do confinamento sanitário/ Las botellas del confinamiento sanitario/ The bottles from sanitary confinement/ The sanitary confinement bottles/ Le bottiglie dal confinamento sanitario/ Die Flaschen aus dem Sanitärbereich

15 años de "El mar de botellas" / 15 anos de "O Mar das Garrafas" / 15 Years of "The Sea of Bottles" / 15 Jahre "das Meer der Flaschen" / 15 ans de "La mer de bouteilles "/ "15 anni di "Il mare delle bottiglie "

O "Stormy Weather" do João Pedro

Joaquin Bejarano Verano: "Le Soleil Royal"

La moto de Gauvin / A mota de Gauvin / La motocicleta de Gauvin / Gauvin's motorcycle / Gauvins Motorrad / La moto di Gauvin